Tragédia anunciada’: os 5 incêndios que já consumiram a Cinemateca
Por ter filmes antigos a base de nitrato de
celulose, a preservação e a revisão periódica são importantes para evitar
incêndios.
O incêndio que atingiu o acervo da Cinemateca
Brasileira na noite de quinta (29/7) foi o quinto que atingiu a instituição
responsável por guardar, preservar e difundir a produção audiovisual
brasileira.
A parte atingida pelo fogo é um anexo da Cinemateca
que fica na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. Ali, há salas com
cópias de longas e curtas-metragens de várias épocas. A sede principal da
Cinemateca fica na Vila Clementino, na Zona Sul da cidade.
A tragédia foi anunciada. Ex-funcionários vinham há
meses alertando sobre a situação precária da instituição.
Por ter filmes antigos a base de nitrato de
celulose, a preservação e a revisão periódica são importantes para evitar
incêndios.
O nitrato de celulose pode causar combustão
espontânea, com a capacidade de incendiar-se apenas com o calor. Quanto mais
velho for o filme, menor será sua temperatura de ignição. Além disso, a umidade
contribui para a deterioração do suporte de nitrato.
Mas, por viver uma crise há anos, a Cinemateca, que
é controlada pelo governo federal, não tem tido investimentos no setor de
preservação.
Depois que o contrato de gestão que a Associação de
Comunicação Educativa Roquette Pinto tinha para administrar a instituição
terminou em 2019, funcionários que cuidavam deste e outros setores foram
demitidos.
A história não é nova. Por ter enfrentado diversas
crises, a instituição que começou como um clube fundado por intelectuais que
estudavam cinema e tinham paixão pela preservação do audiovisual brasileiro já
teve de apagar outros incêndios.
1957
“Completamente destruída pelo fogo a Cinemateca do
Museu de Arte Moderna”, diz uma matéria publicada no dia 29 de janeiro de 1957
no jornal O Estado de S. Paulo.
O texto diz que por volta das 22h30 do dia
anterior, “irrompeu violento incêndio” no 13º andar do edifício da rua 7 de
Abril, onde naquela época ficava a Cinemateca Brasileira e o MAM.
No ano anterior, a Cinemateca havia se separado do
MAM para obter independência jurídica e administrativa e conseguir apoio
financeiro público. Finalmente havia se tornado a Cinemateca Brasileira (antes,
era a Filmoteca, um departamento de cinema dentro do MAM).
“Ali, estavam guardadas películas dos primórdios do
cinema nacional, documentários da vida do país” dos últimos 30 anos, diz o
texto, “entre fitas do interior e películas alemãs, francesas, inglesas, russas
e norte-americanas”.
O incêndio foi causado pela autocombustão sofrida
pelos filmes em suporte de nitrato de celulose.
Naquele ano, comovidas pelo incêndio, entidades
nacionais e estrangeiras fizeram doações para ajudar a Cinemateca. Os filmes,
por sua vez, foram distribuídos em espaços dentro do Parque do Ibirapuera. A
Cinemateca passou a funcionar no último andar do prédio da Bienal.
1969
Ainda dentro do Parque Ibirapuera, a Cinemateca
sofreu novo revés em 1969. Com pouco financiamento, a instituição se viu
novamente sem possibilidades de impedir o processo de deterioração dos filmes.
O incêndio atingiu a guarita do portão 9 do Parque
Ibirapuera, onde estava parte do acervo.
“O cubículo do portão vôou pelos ares na manhã de
anteontem com a força do fogo que lá dentro consumia cerca de 350 filmes da
Cinemateca de São Paulo”, diz reportagem da Folha de S. Paulo do dia 20 de
fevereiro daquele ano.
“Não restou nada das 200 latas de película, entre
as quais algumas obras-primas do cinema, como o ‘Canto do Mar’, de Cavalcanti.”
Segundo a reportagem, sobrou apenas “uma pilha de latas queimadas e um monte de
cinzas”.
“Às 8h30, o zelador Jaime Fernandes Ferreira
caminhava em direção à churrascaria nas proximidades quando ouviu um ruído de
coisa estalando. Ao voltar-se viu fumaça saindo das frestas da vidraça
entreaberta. No mesmo instante deu-se a explosão e um rolo de fogo subiu a 15
metros, chamuscando as árvores vizinhas.”
Por temer novos incêndios, a administração do
Ibirapuera construiu pequenos depósitos ao lado da sede para armazenar os rolos
de filme.
A reportagem destaca como, naquela época, assim
como agora, as verbas aprovadas para a Cinemateca haviam sofrido enormes
reduções, e funcionários, sozinhos, tentavam preservá-la.
“Nenhuma providência até o momento foi tomada para
resguardar o pouco que ainda sobra da iniciativa de Paulo Emilio Gomes de dotar
São Paulo de um museu vivo, que em uma época foi respeitado no mundo inteiro”,
diz.
1982
Mais um incêndio em um depósito de nitrato no
Ibirapuera. Pouco mais de 1,5 mil filmes foram perdidos quando o depósito
número 4 foi incendiado.
Na época, funcionários e apaixonados pela
Cinemateca já haviam desenvolvido um sistema de conservação e catalogação.
O incêndio de 1982 levou a conversas de
incorporação da Cinemateca ao poder público, respeitando sua autonomia. Um
lugar mais seguro para guardar o acervo de nitrato também seria necessário.
2016
Dos anos 1980 aos anos 2000, a Cinemateca passou
por enormes transformações.
A sede foi transferida para o antigo matadouro de
São Paulo, na Vila Clementino, em 1988, resolvendo um de seus grandes problemas
— a falta de espaço.
Em 2003, a Cinemateca é incorporada ao Ministério
da Cultura, com administração da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e dá um
grande passo à frente em suas atividades.
Em 2013, no entanto, a demissão do diretor Carlos
Magalhães pela então ministra da Cultura Marta Suplicy dá início a uma crise
institucional, que só se agravou desde então.
Na época, uma auditoria paralisou os repasses à
SAC, organização que recebia verbas do governo federal por um convênio que
previa gestão conjunta.
Neste meio tempo, a Cinemateca passou meses sem
diretor, funcionou em épocas com um quinto do número original de funcionários,
teve o laboratório de imagem e som (que faz preservação e restauração) parado,
funcionários sem salário e uma gestão organizada a partir de remendos.
O incêndio que consumiu parte de seu acervo desta
vez aconteceu em fevereiro de 2016, em um armazenamento externo de nitrato.
Foram mais de mil rolos de filmes perdidos. Segundo
o site da instituição, o fogo destruiu 731 dos 44 mil títulos guardados na
Cinemateca.
Depois disso, a Cinemateca foi envolvida em mais um
imbróglio que diz respeito à sua administradora.
Em 2018, durante a gestão de Sérgio Sá Leitão,
ministro da Cultura do governo Michel Temer (PMDB), a administração da
Cinemateca foi totalmente transferida para a Associação de Comunicação
Educativa Roquette Pinto (Acerp), que geriu a emissora pública TVE no Rio de
Janeiro. No fim de 2019, nova interrupção, com dezenas de funcionários
demitidos.
Desde então, não houve novo chamamento público para
a escolha de uma instituição substituta à Acerp. Em 2020, quando o presidente
Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou a ida de Regina Duarte à Cinemateca (o
que nunca se concretizou), a Secretaria de Cultura informou a BBC News Brasil
que o processo de chamamento público que iria selecionar uma nova organização
para manter e gerir a Cinemateca estava “em andamento, finalizando a fase
interna para publicação em breve”, sem responder sobre prazos.
2021
Dentro desse contexto de crise aguda da Cinemateca
e ex-funcionários avisando há meses sobre seu sucateamento, um incêndio de
grandes proporções atingiu o anexo na Vila Leopoldina na noite de quinta
(30/7).
O fogo teria começado no teto do galpão, segundo as
pessoas que acionaram a emergência.
Ainda não se sabe qual parte do acervo se perdeu
neste quinto incêndio. Um manifesto divulgado por ex-funcionários da
instituição lista itens do acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina e
que pode ter sido perdido ou afetado pelo incêndio.
Itens como todo o acervo documental das polícias do
audiovisual brasileiros, como o Arquivo Embrafilme. Também havia ali parte do
acervo de documentos do arquivo Tempo Glauber, “inclusive duplicatas da
biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição”, diz o
manifesto.
O texto cita também o acervo da distribuidora
Pandora Filmes, “matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers,
publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, metragens, todos
potencialmente únicos”.
Reportagem da BBC News Brasil sobre uma enchente
que atingiu o mesmo galpão no ano passado havia mostrado que ela provocou danos
em 113 mil DVDs da Programadora Brasil, um projeto de difusão do cinema
brasileiro fora do circuito comercial.
O manifesto dos trabalhadores da Cinemateca classifica o incêndio de
quinta (29/7) como um “crime anunciado, que culminou na perda irreparável de
inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro”.
Comentários
Postar um comentário